No momento em que
soltou a bola, Lancelot, teve a certeza que ia acertar. Observou o seu trajeto
em câmara lenta e parou de respirar por uns momentos enquanto estava na
expectativa de marcar o cesto. Assim que a rede adaptou-se à invasão forçada, o
marcador aumentou dois pontos e o relógio soou o final da partida, o público
levantou-se e festejou a vitória… A sua vitória… Se existia uma certeza na sua
vida, essa certeza era o basquetebol, nunca conseguiu exprimir o que sentia
quando tinha uma bola na mão, aquela emoção que aperta o coração ao mesmo tempo
que o torna acelerado… Era difícil de explicar.
- Desculpe? Pode
dar-me o lugar, por favor? – Perguntou uma senhora com vários sacos na mão.
- Com certeza.
Sente-se. – Afastou-se e encostou-se à porta do metro. Sempre que estava em
compasso de espera a sua mente tinha a tendência de transportá-lo para aquele
último jogo, fazia-o sempre reviver aquele cesto marcado no final da partida. Não
se podia queixar, estas viagens permitiam que o seu corpo sentisse as emoções
passadas, dando-lhe a força necessária para viver o presente e planear para o
futuro. Desde cedo que o basquetebol tornou-se a sua vida mas a realidade é que
nem sempre aquilo que nos define consegue garantir a nossa subsistência na
sociedade actual. A força que permitiu que Lancelot seguisse um caminho
diferente, longe de conflitos, e crescer como homem, tornou-se insuficiente
para sustentar as obrigações monetárias. Jogar? Sim, sempre, por prazer.
Quando chegou a
altura de procurar opções de subsistência o destino tramou-o. O eterno
cavaleiro da Távola Redonda foi abraçado por outra paixão que o consumia. A
paixão que ganhou pelas lendas arturianas, os famosos cavaleiros e a mítica
Excalibur, durante os seus anos no colégio francês, tornou-o um homem de letras.
Sempre que se via com uma caneta na mão escrevia pequenas músicas que guardava
para si, pois sentia que não tinha muito ainda para partilhar. Na altura, era
novo, a sua única experiência era o basquetebol e sentia que não tinha muito
mais para dar. Pensou em tirar Direito Cívico, ingressar na faculdade como a
maioria dos jovens e seguir uma vida denominada “normal”. Mas o destino
tramou-o. Sem estar à espera viu-se numa batalha de “Freestyle” e sentiu a
necessidade de ganhar. Apegou-se ao desafio e prometeu voltar. Fechou-se um mês
em casa e voltou para derrubar os outros concorrentes. Um a um foram ficando
para trás, até que no final apenas Lancelot estava de pé. O cavaleiro tinha
conquistado mais uma vitória.
E assim o hip-hop
escolheu-o. Como que um verdadeiro cavaleiro foi escolhido para defender o
hip-hop português numa altura em que este estilo de música começava a ganhar
raízes em Portugal. “Lancelot, o Pioneiro”. Um dia quem sabe alguém se
lembraria dele assim. Durante anos fez música, durante anos viveu da música,
durante anos foi feliz com a música a tempo inteiro e o basquetebol nos tempos
livres. Quem ouviu hip-hop em Portugal sabe quem é o Lancelot…
O destino, seu
fiel amigo, bateu-lhe à porta uma vez mais. Enquanto esteve sozinho a música e
o seu modo de vida eram suficientes para fazê-lo feliz, mas quando se ama…
Quando formou uma família deixou de ser suficiente. Andar de um lado para o
outro em concertos, dormir em parte incerta, já não era aceitável. Não para um
coração de pai. “Lancelot, o Pioneiro”, tornou-se “Lancelot, o Pai”. O defensor
e protector da sua família. Arranjou um trabalho das nove às cinco, como a
maioria da população, e por um tempo deixou de escrever. Por um tempo
esqueceu-se da música e viveu como “Lancelot, o Pai”. A insatisfação, que
sempre sentiu injusta, indevida, foi pouco a pouco tomando conta de si sem
saber o porquê. Um dia, um belo dia, numa reunião escolar o seu filho disse com
orgulho aos professores:
- O meu pai faz
música. – Sorriu e abraçou-se ao pai.
Nesse mesmo dia, Lancelot
chegou a casa, pegou numa caneta e escreveu. Escreveu até não poder mais. As
letras fluiram como que as águas correntes de uma barragem e a insatisfação foi-se
dissipando com cada música finalizada. Era a peça que lhe faltava. Não
precisava de se anular, não era pior pai por voltar a escrever e a cantar. Não
era pior pai por seguir o seu sonho. Era um pai melhor se assim o fizesse e mostrasse
à sua família que nunca se deve desistir do que queremos desde que nunca nos
esqueçamos das responsabilidades. Lembrou-se de quem era... O seu nome era
Otoniel, uma figura biblíca e um defensor de Deus. “Otoniel, o Leão de Deus”,
assim era o significado do seu nome. Nasceu para ser defensor, defensor dos
seus princípios, defensor dos seus sonhos, defensor da sua família, defensor de
si próprio.
No meio de tanta
divagação, Otoniel, por pouco passou a sua paragem. Saíu a correr do metro, mesmo
em cima do alarme de fecho de portas, e dirigiu-se para a saída. Tinha de ir
para o estúdio gravar o álbum que estava quase pronto. “Lancelot, o Pioneiro”
estava finalmente de volta. Na mala, carregava o equipamento de basquetebol e o
seu bloco de notas. Depois do estúdio tinha de ir jogar, meia horinha para
tirar o stress. Assim que entrou no estúdio recebeu uma mensagem no telemóvel:
- Faz uma música
que ninguém consiga esquecer, papá.
Sorriu...
Finalmente sabia para o que vinha. O eterno cavaleiro e defensor da sua própria
Távola Redonda, “Lancelot, o Leão de Deus”.
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